sábado, 18 de outubro de 2008


NOITE DE ALMIRANTE

Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1884

     Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu ao Arsenal de Marinha e enfiou pela Rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, demais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

— Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.

A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.

— Juro por Deus que está no céu. E você?

— Eu também.

— Diz direito.

— Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.

Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que “lhe ia dar uma coisa”. Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais a corveta tornou e Deolindo com ela.

Lá vai ele agora, pela Rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o Cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: “Jurei e cumpri”, mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.

— Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.

— Mas que foi? que foi?

A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...

— Mas virada por quê?

— Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as ave-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.

— Onde mora ela?

— Na Praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.

Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na Praia Formosa. Não sabia o número da casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.

— Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.

E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa de raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta; fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.

— Sei tudo, disse ele.

— Quem lhe contou?

Deolindo levantou os ombros.

— Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?

— Disseram.

— Disseram a verdade.

Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.

— Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.

Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: “Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.” Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

— Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...

— Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém ...

— Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...

— A que horas volta José Diogo?

— Não volta hoje.

— Não?

— Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?

Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? Que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?

A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

— Sim, senhor, muito bonito, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?

Creio que ele não respondeu nada, nem teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.

— Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.

Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o Hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre-diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir “as bonitas histórias que o sr. Deolindo estava contando”. Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?

A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.

— Realmente, são muito bonitos.

Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.

Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: “Deixa disso, Deolindo”; e esta outra do marinheiro: “Você verá”. Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.

Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem “que vai do meio caminho para terra”. Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.

— Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?

— Que foi?

— Que vai matar-se.

— Jesus!

— Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.

— Eu aqui ainda não vi destes.

— Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. — Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.

FIM de Noite de almirante

O Amor de Dom Pedro e Inês de Castro


INÊS DE CASTRO
A paixão fatal d’el-Rei D. Pedro: 1325? - 1355
Fernando Correia da Silva

ESTAVAS, LINDA INÊS, POSTA EM SOSSEGO...
QUANDO TUDO ACONTECEU...
1320: Em Coimbra, a 8 de Abril, nasce o príncipe D. Pedro, filho de D. Afonso IV, rei de Portugal. - 1340: D. Afonso IV participa na batalha do Salado ao lado de Afonso XI de Castela, é a vitória decisiva da cristandade sobre a moirama da Península Ibérica. Inês de Castro, dama galega, vem para Portugal no séquito de D. Constança, noiva castelhana de D. Pedro; paixão adúltera e fulminante de Pedro por Inês. - 1345: Nasce D. Fernando, filho de D. Constança e de D. Pedro. - 1349 ?: Morte de D. Constança. - 1354: Influenciado pelos Castro (irmãos de Inês), D. Pedro mostra-se disposto a intervir nas lutas dinásticas castelhanas. - 1355: A 7 de Janeiro, com o consentimento d’el-Rei D. Afonso IV, nos paços de Santa Clara (Coimbra) Diogo Lopes Pacheco, Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves degolam Inês de Castro; revolta de D. Pedro contra o pai. - 1357: Morte de D. Afonso IV; D. Pedro sobe ao trono e manda executar os assassinos de Inês de Castro. - 1361: Do Mosteiro de Santa Clara (Coimbra) para o Mosteiro de Alcobaça, D. Pedro I manda trasladar os restos mortais de Inês de Castro. - 1367: A 18 de Janeiro morre D. Pedro I, em Estremoz.

COLO DE GARÇA

Viajar no tempo é meu condão. Aponto ao sec. XIV, pois quero certificar-me de ocorrência que me intriga. No caminho vejo três poetas, três vezes paro eu. Abordo-os, um a um. Digo-lhes ao que vou, convido, aceitam, embarcam. São eles: Luís de Camões, nascido em 1542; António Ferreira, nascido em 1528; e Garcia de Resende, nascido talvez em 1470.
Em 1340 arribamos a Coimbra e ali descemos. É noite. Grande agitação pelas ruas e vielas, cantorias, arraiais, bailaricos, todo o povo a festejar o regresso de D. Afonso IV. Homem bravo, fora ele quem acudira a Afonso XI de Castela para, na batalha do Salado, em conjunto derrotarem a moirama da Península Ibérica.
Um rancho com tochas acesas sai de um beco. Logo depois, cercado por tocadores de trompas e adufes, em passos ligeiros e bem marcados, surge um folião que a todos arrasta para a dança colectiva.
Garcia de Resende reconhece o dançarino:
- Mas é D. Pedro, o filho d’el-Rei D. Afonso IV...
E tem razão, é D. Pedro que, apesar de Príncipe herdeiro, não se recusa a conviver, a bailar e a divertir-se com a arraia-miúda.
Diz Camões:
- O Príncipe a bailar e não tarda muito vai casar...
Palavras ditas e, sem sabermos como tal aconteceu, logo nos encontramos na Sé de Lisboa a assistir à benção nupcial. Já corre o mês de Agosto, sol é o que não falta à beira-Tejo. Casamento, mas de conveniência, como são todos os que se realizam entre os nobres dos vários reinos ibéricos (e europeus...). A noiva, D. Constança, é fidalga castelhana cujo pai mantém um contencioso com Afonso XI de Castela. Talvez por isso, faz parte do séquito de D. Constança, D. Inês de Castro, dama galega cujos irmãos também hostilizam D. Afonso XI.
D. Constança é a noiva, sabemos disso. Mas D. Pedro fica é deslumbrado com formosura de D. Inês que, por sinal, é sua prima segunda (os tais cruzamentos de sangue dos nobres ibéricos...).
Também Camões queda embevecido, murmura:
- Colo de garça...
Vontade minha é dizer “quanto mais prima, mais se lhe arrima...” Mas não digo, a situação é delicada, gracejos perdem o sentido. Pergunto apenas:
- Quem pode resistir a tamanha boniteza? Bem entendo a perturbação do Príncipe...
António Ferreira mostra-se inquieto, assusta-se, assusta-nos: - Vem aí uma tragédia, prevejo...

RAZÃO DO ESTADO, RAZÃO DO AFECTO

Se Inês perdeu a fala, mudo ficou D. Pedro. O Príncipe enamorado e a dama de companhia que não se esquiva à investida. Inês seduzida ou sedutora? Creio que isto e aquilo mas num mesmo instante, paixão a fulminar os dois amantes... Adultério, pecado? Lá pecado será, porém mortal é que não. Venial, pecadilho daqueles que se purgam com uma confissão e meia dúzia de padre-nossos. Portanto, se condenados vão ser os amantes, não será por motivo religioso, mas por outro...
E condenados estão eles. Condena-os a nobreza e condena-os el-Rei D. Afonso IV. Por dois motivos, mas políticos:
1.º - De D. Constança, entretanto falecida, D. Pedro tem um legítimo herdeiro ao trono, D. Fernando. De Inês de Castro, D. Pedro tem três bastardos. El-Rei e a nobreza temem que algum dos bastardos possa, futuramente, querer impugnar a legitimidade de D. Fernando. Portanto, perigo eventual de guerra civil;
2.º - Os Castros, irmãos de Inês, pressionam D. Pedro no sentido de tomar para si também o trono de Castela. Em finais de 1354 D. Pedro acaba por aceitar a ideia. Só por pressão do pai é que, à última hora, suspende a sua intervenção em Castela. A nobreza e el-Rei temem que D. Pedro acabe por arrastar o reino de Portugal para as lutas dinásticas de Castela.
Entendem os nobres, alvitra el-Rei, que só a morte de Inês de Castro poderá livrar o Príncipe de tão funesta influência. Qual será a mais forte das razões? A do Estado ou a do afecto?

Ó TU, QUE TENS DE HUMANO O GESTO E O PEITO...

Inês de Castro assassinada. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a TÁBUA CRONOLÓGICA.

Mas não é só a nobreza e el-Rei a condenarem os amantes. Também a arraia-miúda, por temer guerras com os castelhanos, os condena. No norte de Portugal o cognome que se dá a “putas intriguistas” passa a ser “Inês de Castro”...
Eu, e os meus companheiros de viagem, chegámos a Coimbra em 1340. Agora já estamos nos primeiros dias de Janeiro de 1355. No Castelo de Montemor-o-Velho assistimos à reunião do conselho de D. Afonso IV. Nobres influentes, como Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, convencem el-Rei a decretar a morte de Inês de Castro. D. Pedro está fora, numa caçada, e a 7 de Janeiro aqueles três nobres e el-Rei aproveitam a ausência para invadir o Paço de Santa Clara, em Coimbra.
Apenas eu, e os meus companheiros, nos revoltamos contra a hipótese da matança. Camões (1) descreve o remanso inicial:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito (...)
Quando no Paço de Santa Clara irrompem el-Rei e os matadores, Garcia de Resende (2) põe Inês de Castro a clamar:
“Estes homens d’onde irão?”
E tanto que perguntei,
Soube logo que era el-Rei.
Quando vi tão apressado,
meu coração trespassado
foi, que nunca mais falei.

E quando vi que descia,
Saí à porta da sala;
Devinhando o que queria,
Com grã choro e cortesia
Lhe fiz ua triste fala.
Meus filhos pus derredor
De mim, com grã humildade;
Mui cortada de temor,
Lhe disse: “havei, Senhor,
Desta triste, piedade!

Não possa mais a paixão
Que o que deveis fazer;
Metei nisso bem a mão,
Que é de fraco coração
Sem porquê matar mulher;
Quanto mais a mim, que dão
Culpa não sendo razão,
Por ser mãe dos inocentes
Que ante vós estão presentes,
Os quais vossa netos são.

E têm tão pouca idade
Que, se não forem criados
De mim, só com saudade
E sua grã orfandade,
Morrerem desemparados.
Olhe bem quanta crueza
Fará nisto Vossa Alteza,
E também, Senhor, olhai,
Pois do príncipe sois pai,
Não lhe deis tanta tristeza.
(...)
Também António Ferreira (3) ouve e descreve algo de equivalente, Inês de Castro a censurar Afonso IV:
Esta é a mãe dos teus netos. Estes são
Filhos daquele filho, que tanto amas.
Esta é aquela coitada mulher fraca,
Contra quem vens armado de crueza.
(...)
Que te posso querer, que tu não vejas?
Pergunta-te a ti mesmo o que me fazes,
A causa, que te move a tal rigor.
Dou tua consciência em minha prova.
S’os olhos de teu filho s’enganaram
Com o que viram em mim, que culpa tenho?
Paguei-lhe aquele amor com outro amor,
Fraqueza costumada em todo estado.
Se contra Deus pequei, contra ti não.
Não soube defender-me, dei-me toda,
Não a imigos teus, não a traidores.
A que alguns segredos descobrisse
Confiados em mim, mas a teu filho,
Príncipe deste Reino. Vê que forças
Podia eu ter contra tamanhas forças.

Camões (1) reforça a fala de Inês:
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
António Ferreira (3) prossegue o discurso da Castro:
Não cuidava, Senhor, que t’ofendia.
Defenderas-mo tu, e obedecera,
Inda que o grand’amor nunca se força.
Igualmente foi sempre entre nós ambos;
Igualmente trocamos nossas almas.
Esta que ora te fala, é de teu filho.
Em mi matas a ele, ele pede
Vida par’estes filhos concebidos
Em tanto amor. Não vês como parecem
Aquele filho teu? Senhor meu, matas
Todos, a mim matando; todos morrem.
(...) ai meus filhos,
Chorai, pedi justiça aos altos Céus,
Pedi misericórdia a vosso avô
Contra vós tal cruel, meus inocentes.
Ficareis cá sem mim, sem vosso pai,
Que não poderá ver-vos sem me ver.
Abraçai-me, meus filhos, abraçai-me,
Despedi-vos dos peitos que mamastes.
(...)

Confrangido, el-Rei hesita, retira-se. Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves que decidam o que fazer... E eles decidem: matam, degolam Inês.
Camões (1) descreve e pergunta:
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
Vence a razão do Estado, morre a do afecto...

PEDRO, JUSTICEIRO E CRU


Quero comentar esta chacina com os meus companheiros de viagem. Procuro por eles em Santa Clara, em Coimbra, no choupal, nas margens esquerda e direita do Mondego, mas não os encontro. Concluo que, arrepiados com a morte matada de Inês de Castro, cada qual decidira regressar ao seu próprio tempo, esse é o centro de gravidade que está sempre a puxar por nós. Fácil é tornar a ele, é só escorregar e deixar-nos ir a meio do sono; quando acordamos já estamos lá. Mais difícil é livrar-nos dele, há que ter condão. Eu, que sou um obstinado, resolvo ficar por aqui mais um bocado...
Vejo D. Pedro pegar em armas contra o pai. Com a sua tropa, tenta mesmo ocupar a cidade do Porto. Mas também vejo o bispo de Braga a tentar apaziguar a desavença. Para minha surpresa, D. Pedro amansa. Deduzo que as palavras mágicas tenham sido “a guerra civil envolve sempre o martírio de inocentes”, e D. Pedro a lembrar-se então da inocência dos seus filhos com D. Inês...
El-Rei exige que D. Pedro não persiga os matadores de Inês de Castro e o Príncipe garante que já os perdoou. El-Rei finge aceitar a palavra dada, mas dela desconfia... De qualquer forma, começa a partilhar com o filho o mando e o comando do Reino. Mas quando em 1357 cai no leito de morte, ainda consegue aconselhar os matadores a exilarem-se em Castela. Pelo sim, pelo não, os três abalam e tratam de cruzar fronteira...
Morre el-Rei D. Afonso IV e a primeira medida de D. Pedro de Portugal é combinar com D. Pedro de Castela (filho de D. Afonso XI), a troca de homiziados castelhanos em Portugal por homiziados portugueses em Castela. É assim que são entregues à justiça portuguesa Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Diogo Lopes Pacheco consegue fugir a tempo de Castela para Aragão e daqui para França.
Enquanto trincha e come a sua vianda mal passada pelas brasas e bebe o seu vinho tinto, D. Pedro I vai assistindo à demorada tortura de Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. A um, é arrancado o coração pelas costas, a outro pelo peito. Persignam-se os nobres e murmuram, apavorados:
- El-Rei traiu a palavra dada...
Mas a um homem bom (é o nome que neste tempo se dá a um burguês conceituado), ouço dizer:
- Quem trai a quem fez traição, tem cem anos de perdão...
A obsessão d’el-Rei D. Pedro I passa a ser a justiça que aplica, de forma inclemente, contra criminosos quer de origem nobre, quer plebeia, sem fazer distinção entre uns e outros, o que muito agrada à arraia-miúda. Porém, mais do que fazer justiça, D. Pedro gosta é de ver aplicá-la, goza muito com o sofrimento dos condenados. Por isso ora dizem que é Justiceiro, ora dizem que ele é Cru (cruel). Séculos mais tarde irão chamá-lo psicopata, sádico. Não digo que não seja mas estou em crer que a sua Inês degolada em frente dos filhos, infectou e fez purgar o lado obscuro da sua alma...
Nos intervalos entre a aplicação da justiça e a governação do Reino, do que D. Pedro mais gosta é de sair pelas ruas a bailar e a folgar com outros foliões da arraia-miúda.
Mas nunca se esquece da sua paixão. Comentam que, depois da morte de D. Constança, teria casado secretamente com Inês de Castro. Nunca ouvi D. Pedro dizer tal coisa e duvido que isso tenha acontecido, pois seria afrontar desnecessariamente el-Rei D. Afonso IV. Além do mais, para poder casar com uma prima, teria que obter licença especial, bula papal. E desta não há qualquer notícia...
Tenta é preservar a memória de Inês de Castro. Mandou esculpir dois túmulos, um para Inês, outro para ele. Colocados lado a lado, virão a ser os grandes expoentes da arte tumular medieval portuguesa. Os baixos relevos do túmulo de D. Inês representam cenas da vida de Jesus, da Ressurreição e do Juízo Final. Sobre a tampa está esculpida a imagem de Inês, de corpo inteiro, com coroa na cabeça como se fora rainha. As esculturas do túmulo de D. Pedro representam cenas da vida dos dois apaixonados desde a chegada de Inês a Portugal. Por sua ordem, os dois túmulos são colocados dentro da igreja, à mão direita, cerca da capela-mor do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Em 1361 D. Pedro manda trasladar os resto mortais de D. Inês, do Mosteiro de Santa Clara para o Mosteiro de Alcobaça. Os restos mortais seguem em liteira de luxo, conduzida por grandes cavaleiros, acompanhada por muita gente, nobres, clérigos, burgueses e plebeus. Pelo caminho até Alcobaça, muitos homens com círios nas mãos. No Mosteiro, muitas missas e grande solenidade para depositar os restos de Inês em túmulo novo.
Também comentam que D. Pedro forçou os nobres a prestar vassalagem a D. Inês, obrigando-o as beijar a mão do cadáver. Mas isso também não vi.
Outros amores? Depois da morte de Inês, D. Pedro não voltou a casar nem a amancebar-se. Sei apenas que, de uma Teresa Lourenço, teve ainda um bastardo ao qual pôs o nome de João. O que ninguém levou ou leva a mal... Nestes tempos, todo o nobre que se preza, em casa tem um rancho de filhos legítimos e fora de casa tem um rancho de bastardos. O curioso é que este bastardo João virá a ser o futuro Mestre de Avis, fundador da segunda dinastia portuguesa. Sei isto porque pertenço aos séculos XX e XXI; o que ainda vai ocorrer, para mim já ocorreu.
Pelo mesmo motivo também sei que os amores de Pedro e Inês, por causa do testemunho dos meus três companheiros de viagem, irão inspirar não apenas gerações de artistas portugueses, mas de artistas de todo o mundo. Serão tema de ópera na Itália, de zarzuela em Espanha, de romance e tragédia em França, etc..
Que mais tenho eu a dizer? Ah, já sei: D. Pedro morre em 1367, em Extremoz, e o seu corpo é depositado no túmulo do Mosteiro de Alcobaça, ao lado do túmulo de Inês de Castro. Governou o Reino durante dez anos. E dizem as gentes, chorosas, que “este rei nunca havia de morrer” e que “tais dez anos nunca houve em Portugal como estes em que reinou el-Rei D. Pedro”.
Bem, acho que já chegou a hora de regressar ao meu próprio tempo, melhor é deixar-me escorregar a meio do sono...
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(1) Versos de Camões recolhidos no Canto III de Os Lusíadas.
(2) Versos de Garcia de Resende recolhidos nas TROVAS À MORTE DE INÊS DE CASTRO in CANCIONEIRO GERAL.
(3) Versos de António Ferreira recolhidos na tragédia A CASTRO.